Não vou contar o meu signo; vou deixar você adivinhar, pois acredito assim provocar curiosidade. É verdade que eu sou uma onça - acredito nisso - porém sou arredia e nem sempre me deixo saber, de modo que performo outros animais até com certo prazer. Eu faço de tudo um pouco. Eu falo línguas, entendo da lei de oferta e demanda e sobre acumulação e especulação capitalistas predatórias. Eu entendo que o meio ambiente é importante, mas eu nunca vivi na floresta. Eu fui uma onça retirada da mata e, se hoje percorro longas distâncias, é porque não sei o caminho de casa. Por isso estou reaprendendo a confiar nos instintos, no faro, no tremer dos bigodes ao vento. Minha intuição é que eu poderia fazer uma casa em qualquer lugar, mas a verdade é que o mundo globalizado não é de todos. Então eu aprecio as longas estadas também, buscando apenas uma casa em mim mesma e na própria travessia. Entendo as coisas na literalidade. Nada disso é metáfora, embora tudo esteja inserido num contexto maior. Às vezes eu não falo nada, mas se eu tiver que escrever, pode ser que me exceda. O corpo tem dado a medida. O fogo de criar, que até pouco tempo eu não sabia que me queimava, às vezes me consome e aí eu sei que estou onde deveria estar. Então, eu, que sou arredia, me confundo com outras chamas, me desfaço, me faço faísca ou labareda, retorno e lambo minhas patas.
Venho de uma família de pessoas com o nome estranho. talvez por isso eu me ache um corpo estranho no mundo. ou talvez seja pela cor da minha pele. é, talvez seja pela minha cor preta que eu me ache um corpo estranho no mundo. ou talvez eu não me ache um corpo estranho, mas as pessoas acham e por isso eu acabe achando também. não tem nada de errado com meu corpo, com a minha cor ou comigo. espero um dia entender muitas coisas porque atualmente eu sou alguém que ainda não entendeu nada. eu achava que sabia o que queria e fiz biologia. fiz licenciatura, bacharel e agora estou no mestrado estudando anexina. anexina é uma proteína. proteína faz a gente viver. proteína faz a gente dançar. no fim a biologia e a dança se conectaram e eu consigo entender mais do meu corpo e da minha mente de diferentes pontos de vista. eu sou apaixonado por cinema, dança e música. amo o que a arte faz comigo e os lugares pra onde ela me leva. a minha vida inteira na dança foi na mesma companhia, por 14 anos. sou louco por eles, mas comecei a querer dizer algumas coisas que talvez eu só conseguisse tentando outros caminhos. me interesso pelo que me atravessa e muita coisa tem me atravessado ultimamente. o amor, a psicologia, o chão, a luta antirracista, antifacista, antihomofóbica, antitudoquevaicontraodireitobasicodevivereserquemvoceé. eu, que venho me desconstruindo a cada dia, queria também desconstruir meus movimentos, meu corpo, achar um equilíbrio no desequilíbrio, achar um conforto no desconforto, buscar oposições. queria pensar menos e deixar que as coisas simplesmente aconteçam sem a minha interferência. tenho chorado bastante, mas não que isso seja ruim. venho de uma família de pessoas com o nome estranho. meu nome é mayk, prazer.
Odeio apresentações e tardes quentes demais. As pontas dos meus dedos são sempre geladas. Passei os últimos dois anos pensando em anjos. Tenho pavor de peixes e altura, durmo pouco. Ontem sonhei que comia uma bromélia. Queria ser bailarino, mas atualmente prefiro pintar. Instituições etc etc etc assinaturas etc etc etc horas etc etc etc aqui e acolá etc etc etc. Um dia eu tinha oito anos e vi numa igreja uma pintura de cristo nu usando uma tanga cintilante e transparente, minúscula, morrendo, agora, quero dedicar minha vida a falar sobre isso. Não por pintar de rosa alguma quimera, mas por que acredito no sangue. No geral eu falo pouco. Gosto de tirar moldes de coisas e pensar na eternidade. Obcecado por cavalos, cadeiras e frases de efeito. No fim da pandemia vou começar a fumar.
Nasci na Bahia.
Meu nome é Samantha, tenho 24 anos. Sou atriz, graduada pela Unicamp, e isso talvez revele muito sobre meus modos fazer. Prestei medicina no vestibular, porque acho que eu queria ajudar as pessoas e cuidar delas. Às vezes eu esqueço que a arte também cuida das pessoas, e quando lembro eu choro. Sou rigorosa e adquiri o hábito infeliz de associar rigor a rigidez. Sou curiosa e tenho múltiplos interesses. Gostaria de poder fazer muitas coisas bem. Mas também sou só humana e isso é bom. Eu gosto dos seres humanos, ainda que tenham um imenso potencial destrutivo, eu gosto porque são contraditórios. Gosto das pequenas dramaturgias da vida e tenho buscado a simplicidade das coisas. Seja na vida, seja no ofício. Simplicidade, sinceridade e singeleza. Sou atriz porque me ajuda a entender a mim mesma e o outro, e perceber o que não posso ainda entender. Neste momento, eu, Samantha, vejo a atuação enquanto um ato de desnudamento. De deixar-se revelar o que é mais íntimo. É processual, efêmero, irrepetível (não importa o quanto eu queira repetir) e por isso é mágico. Eu acho que arte tem a ver com amor. Eu acredito no amor. E eu sou romântica, embora eu negue. Por último, o que me fascina na dança, é que ela lida com o não dito, e me pergunto se ela não tem uma certa liberdade para não precisar significar… Me desagrada “precisar significar”… Me desagrada profundamente.
Alguém falou do sonho e do onírico. Eu lembrei de deriva e devaneio, mas eram delírios.
Me convenci, em algum momento, de que não estávamos falando de amor, mas da falta dele e, por consequência, também dele. Temas correlatos: a grande epopéia humana se faz/fez assim, no desejo - no instinto de sobrevivência humano, que se difere, portanto, das amebas. Essa mistura de racionalidade e sentimentalismo que é animal, porque típica da nossa espécie.
Faz um tempo que eu tive esse pequeno desejo, essa vontade de fazer uma dança linda. De produzir uma obra poética no estilo aquarela. Mas os meus materiais eram outros. Esferográfica, canetinha e marca texto, coisas assim. Então outras poéticas. Eu já tinha encontrado aí um lugar, quando olhei pra trás e me perguntei se não haveria meios de incluir uma aquarela, uns tons pastéis.
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